O Brasil é um país complicado. Embaixo do verniz de cordialidade com o qual geralmente vendemos nossa imagem além das fronteiras, esconde-se um lugar de contradições. Sob o manto do “bem maior”, qualquer resquício de freio moral se dissipa sob um manto de hipocrisia.
Não precisamos ir muito longe para ver esse “brasileiro médio” em ação. Nos últimos dias, basta ligar o noticiário para dar de cara com hordas de “pessoas de bem” estimulando um golpe de estado em nossa democracia. Tudo com a desculpa de um “bem maior”. Pátria e tal.
Não sei o tamanho da bola de cristal à disposição da roteirista e diretora Carolina Markowicz, aqui em seu primeiro longa. Mas é inegável que, ao recortar um microcosmo embrenhado num interior que parece apenas flertar com a civilização, o tal “Brasil profundo”, ela faz de “Carvão” um retrato incômodo de quem somos e do que somos capazes fazer quando o cinto aperta.
A trama simples traz a reboque vigor e senso de urgência, aliados a um total domínio de técnica e um delicioso senso de humor mordaz. Seguindo a estrutura da paz aparente, dilacerada com a introdução de um elemento estranho, o filme mostra uma família que, por circunstâncias adversas, decide abrigar em sua casa um traficante argentino.
No centro está Irene (Maeve Jinkings, um colosso), que aos trancos segura seu núcleo familiar completado pelo marido Jairo (Rômulo Braga) e o filho Jean (Jean Costa, uma revelação). O sustento garantido pela carvoaria no terreno da família esbarra em sérias dificuldades financeiras, agravadas pelo estado quase vegetativo do pai de Irene.
A fortuna parece mudar quando Juracy (Aline Marta Maia), agente de saúde da comunidade, faz uma proposta sinistra à família. Trato aceito, eles logo recebem Miguel (César Bórdon), traficante argentino foragido que, enquanto foge do olhar da lei, garante à Irene e seu séquito uma grana extra para elevar o padrão da família.
Absolutamente nada em “Carvão” é o que parece ser. Em um momento em que o cinema corre para se adequar a algoritmos e novos caminhos de produção e distribuição, Markowikz aposta na originalidade e no inusitado. Cada decisão de seus personagens alimenta o momento seguinte, num jogo progressivo de surpresas e reviravoltas. A sensação de isolamento, geográfico e pessoal, é quase insuportável. Como consequência, o segredo obviamente não será mantido nas sombras.

Em ‘Carvão’, o isolamento é geográfico e pessoal
Imagem: Pandora
São segredos, por sinal, que movem as peças em “Carvão”. A dinâmica familiar tradicional, tão alardeada pelos defensores de um conservadorismo artificial, é estilhaçada no texto da diretora para refletir a hipocrisia do mundo real. A máxima é, se tudo está bem, ou pelo menos mantém um semblante de normalidade, então infidelidade e violência, ganância e morte, são pecados aceitáveis.
Nas mãos de um cineasta em busca de palanque, essa fusão de elementos soaria discursiva e verborrágica. Carolina, por sua vez, entende a importância do humor como uma vírgula que amplia o impacto do drama. A gravidade da trama é quebrada e humanizada com uma injeção de risadas nervosas. Markowikz sabe contar uma história, e o esmero aqui é excepcional.
Mesmo na distância do Brasil profundo, existe uma conexão. É justamente essa conexão que faz de “Carvão” um filme absolutamente universal, ao mesmo tempo que indiscutivelmente brasileiro. Seja nos zumbis marchando hoje com bandeiras nas costas, seja em um núcleo familiar fragmentado pela presença de um estranho, o reflexo incomoda. Por isso mesmo não conseguimos deixar de olhar.